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sábado, 17 de janeiro de 2015

Igreja – Muitos membros num só corpo Por: C.S. Lewis























Nenhum cristão e, mesmo, nenhum historiador podem aceitar o epigrama que define a religião como “aquilo que o homem faz com sua solidão”. Creio ter sido um dos irmãos Wesleys que disse não haver no Novo Testamento o menor indício de religião solitária. Somos proibidos de negligenciar nossas reuniões. O cristianismo já é institucional desde o mais antigo dos seus documentos. A igreja é a noiva de Cristo. Somos membros uns dos outros.

Em nossos dias, a noção de que a religião é assunto de caráter privado — ocupação particular dos momentos de lazer — é simultaneamente paradoxal, perigosa e natural. É paradoxal porque a exaltação do indivíduo no campo religioso surge numa era em que, em todos os outros campos, o coletivismo derrota impiedosamente o individualismo. Observo isso até numa universidade. Quando fui a Oxford pela primeira vez, a sociedade de estudantes era tipicamente formada por um grupo reduzido de homens que se conheciam intimamente e ouviam, reunidos numa pequena sala, a dissertação de um dos companheiros, debatendo seus problemas até uma ou duas da transformado numa platéia heterogênea de uma ou duas centenas de estudantes reunidos num amplo auditório, para ouvir uma palestra de algum visitante ilustre. Mesmo nos raros momentos em que o estudante moderno não participa das atividades gerais de seu grupo, poucas vezes o vemos num daqueles passeios solitários, ou em companhia de um único colega, os quais formaram a mente das gerações anteriores. Ele vive na multidão. Os comitês substituíram a amizade. E essa tendência não só existe dentro e fora da universidade, mas é, muitas vezes, aprovada. Há enxames de mestres-de-cerimônia, auto designados e intrometidos, que devotam a vida à destruição da solidão onde esta ainda exista. E a chamam “tirar os jovens da casca”, “despertá-los” ou “vencer a apatia deles”. Um Agostinho, um Vaughan, um Traherne ou um Wordsworth que viesse hoje ao mundo logo seria curado pelos dirigentes de alguma organização de jovens. E se existisse um bom lar, tal como o de Alcino e Arete na Odisséia, ou o dos Rostovs em Guerra e Paz, ou o de qualquer das famílias de Charlotte M. Yonge, ele seria acusado de burguês e contra ele se levantariam todos os engenhos destruidores. Mas, mesmo quando os planos falham e alguém é deixado numa solidão física, o rádio encarrega-se de tornar verdadeiras — ainda que num sentido diferente — as velhas palavras de Cipião: “nunca tão pouco só do que quando só”. Vivemos, de fato, num mundo sedento de solidão, silêncio, privacidade e, portanto, sedento de meditação e amizade verdadeira.

O fato de a religião ser relegada à solidão é, pois, na nossa época, um paradoxo. Mas é também perigoso por duas razões. Em primeiro lugar, quando o mundo moderno nos grita: “você pode ser religioso quando estiver só”, acrescenta num murmúrio: “mas eu me encarregarei de impedir que você fique só”. Fazer do cristianismo um assunto de caráter privado, ao mesmo tempo que se acaba com toda a intimidade, é o mesmo que relegá-lo ao fim do arco-íris ou do dia de São Nunca. Esse é um dos estratagemas do inimigo. Em segundo lugar, existe o perigo de que os verdadeiros cristãos, que sabem que o cristianismo não é um assunto meramente particular, reajam contra o erro, transpondo para a nossa vida espiritual o mesmo coletivismo que já conquistou nossa vida secular. Essa é a outra cilada do inimigo. Qual bom jogador de xadrez, está sempre procurando colocar-nos numa posição tal que só salvemos a torre com a perda do bispo. Para que não caiamos na armadilha, precisamos insistir que, embora a concepção de um cristianismo individual seja errada, trata-se de um erro profundamente natural e, de forma canhestra, tenta salvaguardar uma grande verdade. Por trás disso está a noção de que o coletivismo moderno é um insulto à natureza humana e de que Deus será nosso escudo e proteção contra esse mal, assim como dos outros males.

É um sentimento justo. Assim como a vida pessoal e privada situa-se num plano inferior ao da participação no corpo de Cristo, a vida coletiva também se situa num plano inferior ao da vida pessoal e privada e não possui valor, a não ser pelo serviço que presta. A comunidade secular, uma vez que existe para o nosso bem natural e não sobrenatural, não tem finalidades maiores do que auxiliar e proteger a família, a amizade e a solidão. Estar feliz em casa, disse Johnson, é o objetivo de todo o esforço humano. Se considerarmos apenas os valores naturais, podemos dizer que nada há melhor debaixo do sol do que uma família que ri à volta da mesa, dois amigos que conversam bebendo café ou um homem só, lendo um livro que lhe interesse; e que toda a economia, a política, o direito, o exército e as instituições, salvo à medida que contribuem para prolongar e multiplicar tais cenas, são como um arado na areia ou uma sementeira no oceano, uma vaidade sem sentido e uma afronta para o espírito. As atividades coletivas são, evidentemente, necessárias; mas é aquele o seu objetivo. Aqueles que possuem essa felicidade particular talvez sejam obrigados a sacrificar grande parte dela, para que possa ser distribuída mais amplamente. É possível que todos tenham de comer menos para que ninguém morra de fome. Mas não confundamos males necessários com bem. É fácil cometer esse erro. Para ser transportada, a fruta deve ser enlatada, perdendo, por conseqüência, parte das suas propriedades. Mas há gente que acaba por preferir a fruta enlatada à fruta fresca. Uma sociedade doente precisa pensar muito em política, como um enfermo é obrigado a preocupar-se com a digestão; desprezar o assunto pode ser uma covardia fatal para ambos. Mas se ambos passarem a considerar que esses são o alimento natural da mente — se esquecerem que essas preocupações só se justificam porque lhes permitem pensar em outras coisas — então o tratamento a que se submetem por amor à saúde transforma-se em nova enfermidade mortal.

Existe, com efeito, em todas as atividades humanas, uma tendência fatal de os meios usurparem os próprios fins que eles se destinam a servir. Assim o dinheiro acaba atrapalhando a troca de mercadorias, as regras de arte asfixiam os gênios e os exames impedem os jovens de tornar-se doutos. Não se conclui, infelizmente, que os meios usurpadores sejam sempre dispensáveis. É provável que o coletivismo de nossa vida seja necessário e venha a aumentar; e creio que a única salvaguarda contra suas propriedades mortais está na vida cristã; porque temos a promessa de que podemos lidar com serpentes e beber veneno, e resistir. É essa a verdade que está por trás da definição errônea de religião com que começamos. Errônea porque opõe a mera solidão ao coletivismo. O cristão é chamado não ao individualismo, mas à participação no corpo de Cristo. A distinção entre a coletividade secular e o corpo de Cristo é, portanto, o primeiro passo para compreender como o cristianismo, sem ser individualista, pode neutralizar o coletivismo.

Logo no início, somos bloqueados por uma dificuldade de caráter linguístico. A própria palavra membership de origem cristã, foi adotada pelo mundo e esvaziada de seu sentido. Em qualquer tratado de lógica aparece a expressão “membros de uma classe”. Deve-se afirmar enfaticamente que os elementos que se incluem numa classe homogênea são quase a antítese daquilo a que Paulo chamou membros. Com membros — mele (mele) — queria dizer o que chamaríamos de órgãos, coisas essencialmente diferentes e complementares entre si: elementos que não diferem apenas na estrutura e na função, mas também na dignidade. Assim, num clube, tanto o comitê no todo, como os funcionários no todo podem ser devidamente considerados “membros”: aquilo que chamaríamos de membros do clube são meras unidades. Uma fileira de soldados identicamente treinados e uniformizados ou um grupo de cidadãos que se inscreveram para votar numa zona eleitoral não são membros no sentido paulino do termo. Temo que, quando afirmamos ser alguém “membro da igreja”, geralmente o significado não seja nem um pouco paulino: significa que é apenas um elemento — mais um espécime da classe a que pertencem X, Y e Z. A estrutura familiar fornece-nos um exemplo da diferença que existe entre a verdadeira participação num corpo e a mera inclusão numa coletividade. O avô, os pais, o filho adulto, a criança, o cão e o gato são verdadeiros membros da família (no sentido orgânico) precisamente porque não são membros ou elementos de uma classe homogênea. Não são intercambiáveis. Cada pessoa é quase um espécime único. A mãe não é apenas uma pessoa diferente da filha, é outra espécie de pessoa. O irmão adulto não é mera unidade entre os filhos, é um estado separado do reino. O pai e o avô são quase tão diferentes entre si como o cão e o gato. Quem exclui um membro da família não está simplesmente reduzindo o tamanho dela: está ferindo sua própria estrutura. Sua unidade é uma unidade de dessemelhantes, quase de incomensuráveis.

É a longínqua percepção da riqueza inerente a essa espécie de unidade que nos faz apreciar livros como The Wind In the Willows; um trio como o Rato, a Toupeira e o Texugo simboliza pessoas profundamente diferentes naquela união harmoniosa, que intuímos ser o nosso verdadeiro refúgio, tanto da solidão como da coletividade. A afeição entre pessoas que dificilmente poderiam formar pares perfeitos, tais como Dick Swiveller e a marquesa ou o Sr. Pickwick e Sam Weller, impressiona-nos da mesma maneira. É por isso que a ideia atual de que os filhos devem tratar os pais pelo nome é tão perversa. Pois é uma tentativa de desconsiderar a diferença de espécies que forma a verdadeira unidade orgânica. Estão tentando incutir na criança o ponto de vista absurdo de que a sua mãe é uma simples cidadã como outra qualquer; e isso para torná-la ignorante do que todos sabem e insensível ao que todos sentem. Estão tentando arrastar as repetições descaracterizantes da coletividade para dentro do mundo familiar, mais rico e mais concreto.

O preso ostenta um número no lugar do nome. É o coletivismo levado ao extremo. Mas o homem que vive em sua casa também pode perder o nome, sendo chamado simplesmente de “pai”. É a participação num corpo. Os dois casos de perda do nome fazem-nos lembrar que há dois caminhos opostos para sair do isolamento.

A sociedade à qual o cristão é chamado no batismo não é uma coletividade, mas um corpo. É o corpo do qual a família é a imagem no nível natural. Alguém que se integrasse nesse corpo com a ideia falsa de que seria membro da igreja no sentido moderno, esvaziado — um aglomerado de pessoas, como se fossem moedas ou fichas — seria corrigido já na entrada, ao descobrir que o Cabeça desse corpo é tão diferente dos membros inferiores, que estes nada têm em comum com aquele, salvo por analogia. Somos chamados, logo de princípio, a associar-nos como criaturas ao Criador; como mortais ao Imortal; como pecadores redimidos ao Redentor sem pecado. Sua presença, a interação entre ele e nós, sempre deve constituir o maior fator dominante da nossa vida dentro do corpo; excluindo qualquer concepção de comunhão cristã que não signifique, em primeiro lugar, comunhão com ele. Depois disso parece quase desnecessário enunciar a diversidade de operações que se verificam na unidade do Espírito. Mas ela é patente: há pastores separados dos leigos, catecúmenos separados de membros plenos. Existe a autoridade do marido sobre a mulher, dos pais sobre os filhos. Sob as formas muito sutis para receber caráter oficial, verifica-se um intercâmbio contínuo de ministérios complementares. Todos vivemos ensinando e aprendendo, perdoando e sendo perdoados, representando Cristo para o homem quando por ele intercedemos e representando o homem para Cristo quando outros intercedem por nós. O sacrifício de nossa intimidade egoísta, exigido diariamente de nós, é compensado diariamente, cem vezes, no crescimento pessoal que a vida do corpo estimula. Os que são membros uns dos outros tornam-se tão diferentes quanto a mão o é do ouvido. É por isso que os filhos do mundo têm uma semelhança tão monótona, se comparados com a quase fantástica variedade dos santos. A obediência é o caminho da liberdade, a humildade, o caminho do prazer e a unidade, o caminho que conduz à personalidade.

E agora preciso dizer o que lhe pode parecer um paradoxo. Ouvimos dizer muitas vezes que, embora ocupemos posições diferentes neste mundo, todos somos iguais aos olhos de Deus. De certo modo é assim. Deus não faz acepção de pessoas: o amor que ele nos tem não se mede pela nossa posição social ou pela nossa capacidade intelectual. Mas creio haver um sentido em que essa máxima é oposta à verdade. Aventuro-me a dizer que uma igualdade artificial é necessária na vida de um Estado, mas que na igreja tiramos essa máscara, recuperamos nossas verdadeiras desigualdades e somos, dessa forma, renovados e revitalizados.

Creio na igualdade política. Mas é possível ser democrata por dois motivos opostos. Você pode pensar que todos os homens são tão bons que merecem participar do governo, e tão sábios, que a comunidade necessita de seus conselhos. Em minha opinião, essa é a falsa e romântica doutrina da democracia. Por outro lado, você pode acreditar que os homens caídos são tão perversos, que nenhum deles pode receber poder desmedido sobre seus companheiros.

Parece-me ser essa a verdadeira base da democracia. Não acredito que Deus tenha criado um mundo igualitário. Creio que a autoridade do pai sobre o filho, do marido sobre a mulher, do culto sobre o inculto integram-se no plano original de Deus da mesma maneira que a autoridade do homem sobre o mundo animal. Creio que, se não tivéssemos caído, Filmer teria razão, e a monarquia patriarcal seria a única forma legítima de governo. Mas, uma vez que tomamos conhecimento do pecado, descobrimos, como diz Lorde Acton, que “todo poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. O único remédio é substituir os poderes por uma ficção legal de igualdade. É correto que a autoridade do pai e do marido tenha sido abolida no plano legal, não porque essa autoridade seja em si má (sustento, pelo contrário, que é de origem divina), mas porque os pais e os maridos são maus. É correto que a teocracia tenha sido abolida, não porque seja mau que sacerdotes cultos governem leigos ignorantes, mas porque os sacerdotes são maus como todos nós. A própria autoridade do homem sobre o animal tem de ser refreada dados os constantes abusos.

Para mim, a igualdade equivale às roupas. É o resultado da queda e o seu remédio. Qualquer tentativa de reverter o caminho que nos conduziu ao igualitarismo e reinstalar as velhas autoridades no plano político é, para mim, tão absurda quanto tirar a roupa. O nazista e o nudista cometem o mesmo erro. Mas é o corpo nu, ainda ali, sob a roupa que vestimos, que vive de fato. É o mundo hierárquico, ainda vivo e (muito justamente) escondido sob a fachada de cidadania igualitária, que realmente nos interessa.

Não me entenda mal. Não tenho a mínima intenção de diminuir o valor dessa ficção igualitária, que é nossa única defesa contra a crueldade uns dos outros. Condenaria fortemente qualquer medida para abolir o sufrágio universal ou o direito das mulheres. Mas a função da igualdade é puramente protetora. É remédio, não alimento. Tratando as pessoas (num judicioso desafio aos fatos observados) como se fossem todas iguais, evitamos inúmeros males. Mas não é disso que devemos viver. É inútil dizer que os homens possuem um mesmo valor. Se atribuímos à palavra valor o sentido que o mundo lhe dá — se entendemos que os homens são igualmente úteis, belos, bons ou divertidos — a declaração é absurda. Se significa que todos possuem o mesmo valor como almas imortais, oculta-se um erro perigoso. O valor infinito de cada alma humana não é doutrina cristã. Deus não morreu pelos homens por algum valor que neles houvesse. O valor de cada alma humana, considerada de per si, independentemente de Deus, é zero. Como escreve Paulo, morrer por homens bons seria um ato puramente heroico, não divino; mas Deus morreu por homens pecadores. Ele amou-nos, não porque éramos dignos do seu amor, mas porque ele é amor. Pode ser que ele ame a todos igualmente — com certeza, ele amou a todos até a morte — e eu não sei direito o significado da expressão. Se existe igualdade, está no seu amor, não em nós.

Igualdade é um termo quantitativo e, por conseguinte, muitas vezes não tem relação alguma com o amor. A autoridade exercida com humildade e a obediência aceita com alegria são as diretrizes pelas quais vive o nosso espírito. Mesmo no campo dos sentimentos (quanto mais no corpo de Cristo) ficamos longe do mundo que diz: “sou tão bom quanto você”. É como sair da marcha e entrar na dança. É como tirar a roupa. Tornamo-nos, como dizia Chesterton, maiores quando nos curvamos e menores quando ensinamos. Deleitam-me aqueles momentos nos cultos de minha igreja, em que o ministro levanta-se e eu ajoelho. À medida que a democracia se fortifica no mundo exterior e sucessivamente se eliminam as oportunidades de mostrar reverência, tornam-se mais e mais necessários o refrigério, a purificação e o revigorante regresso à desigualdade, oferecidos pela igreja.

Assim, a vida cristã defende a pessoa em detrimento da coletividade; sem colocá-la em isolamento, mas dando-lhe a posição de um órgão do corpo de Cristo. Como se diz em Apocalipse, o cristão é feito “coluna no santuário de Deus”; e acrescenta-se: que daí jamais sairá”. Essas palavras apresentam um outro aspecto da questão. A posição estrutural que o mais humilde dos cristãos ocupa na igreja é eterna e mesmo cósmica. A igreja sobreviverá ao universo; nela, o indivíduo sobreviverá ao universo. Tudo que se liga ao Cabeça imortal participará de sua imortalidade. Pouco se fala disso nos púlpitos cristãos dos nossos dias. O resultado do nosso silêncio pode ser avaliado pelo fato de um dos meus ouvintes, numa preleção às forças armadas, ter considerado essa doutrina “teosófica”. Se não cremos nela, vamos ser honestos e relegar a fé cristã aos museus. Mas se cremos, vamos deixar de fingir que ela não faz diferença. Porque essa é a verdadeira resposta a toda exigência excessiva da coletividade. Ela é mortal; nós viveremos para sempre. Tempo virá em que todas as culturas, todas as instituições, todas as nações, a espécie humana e toda a vida biológica se extinguirão, mas cada um de nós permanecerá vivo. A imortalidade é prometida a nós, não a essas generalidades. Não foi pelas sociedades ou pelos estados que Cristo morreu, mas pelos homens. Nesse sentido, pode parecer aos coletivistas seculares que o cristianismo envolve uma afirmação quase desvairada da individualidade. Mas não será o indivíduo como tal que participará da vitória de Cristo sobre a morte. Participaremos dessa vitória estando no Vencedor. A renúncia ou, na linguagem forte das Escrituras, a crucificação do eu é o passaporte para a vida eterna. Nada que não morreu ressuscitará. É assim que o cristianismo resolve a antítese entre individualismo e coletivismo. Aí está, para o observador não-cristão, a ambiguidade enlouquecedora da nossa fé. Ela opõe-se implacavelmente ao nosso individualismo natural; por outro lado, restitui aos que abandonam o individualismo a posse eterna de sua personalidade e até de seus corpos. Como meras entidades biológicas, cada uma com a sua própria vontade de viver e de se expandir, somos, sabidamente, insignificantes; somos nulidades. Mas como órgãos do corpo de Cristo, como pedras e colunas do templo, temos a certeza de uma identidade eterna e viveremos para lembrar-nos das A questão pode ser apresentada de outro modo. A personalidade é eterna e inviolável. Mas a personalidade não é o dado de onde partimos. O individualismo com que todos começamos é apenas uma caricatura ou uma sombra dela. A verdadeira personalidade situa-se no futuro — quão distante, para muitos de nós, nem ouso dizer. E a chave dela não está em nós. Não será atingida por um desenvolvimento de dentro para fora. Virá ter conosco quando ocuparmos aquele lugar da estrutura do cosmo para o qual fomos destinados ou criados. Como a cor, que só se revela em toda sua beleza quando colocada pela excelência do artista no lugar preestabelecido, entre todas as outras; como a especiaria que só revela seu verdadeiro sabor quando adicionada, onde e quando deseja o bom cozinheiro, aos outros ingredientes; como o cão que só manifesta realmente suas qualidades quando toma seu lugar na família do homem, nós também só ganharemos a nossa verdadeira personalidade quando consentirmos em que Deus nos coloque no lugar que nos compete. Somos mármore esperando ser esculpido, metal esperando ser vertido no molde. É certo que mesmo no ser irregenerado existem já leves indícios da forma que cada um há de tomar, da coluna que cada um há de ser. Mas parece-me grande exagero retratar a salvação de uma alma como se fosse, de modo geral, totalmente igual ao desenvolvimento de uma semente até se transformar em flor. As próprias palavras arrependimento, regeneração, novo homem sugerem algo muito diferente. É possível que certas tendências do homem natural tenham de ser simplesmente rejeitadas. Nosso Senhor fala de olhos arrancados e mãos cortadas — método de adaptação francamente procustiano.

Recuamos diante disso porque, em nossos dias, começamos a pôr toda essa figura de cabeça para baixo. Partindo do princípio de que cada individualidade é de “infinito valor”, confundimos Deus com uma espécie de agência de emprego cuja função seria encontrar a carreira adequada para cada alma, a luva certa para cada mão. Mas o valor do indivíduo não está nele. Ele pode receber valor. Ele o recebe pela união com Cristo. Não se trata de encontrar, no templo vivo, um lugar que ponha em relevo o seu valor inerente e lhe dê espaço para as idiossincrasias naturais. O lugar já existia. O homem foi criado para ele. O homem não será ele mesmo enquanto não o preencher. Só no céu seremos pessoas autênticas, eternas e realmente divinas exatamente como, mesmo hoje, nosso corpo só é colorido quando há luz.

Dizer isso é repetir o que todos aqui já admitem — que somos salvos pela graça, que em nós não habita bem algum, que somos, de ponta a ponta, criaturas e não criadores, seres derivados que não vivem por si próprios, mas por meio de Cristo. Se parece que compliquei uma questão simples, espero ser perdoado. Eu estava preocupado em apresentar dois pontos. Queria tentar denunciar esse culto anticristão do indivíduo, tão predominante no pensamento moderno, juntamente com o coletivismo; porque um erro gera o erro oposto e, longe de se neutralizarem, agravam-se mutuamente. Refiro-me à execrável ideia (comum na crítica literária) de que em cada um de nós existe, oculto, um tesouro chamado personalidade e que expandi-lo, expressá-lo, preservá-lo de influências, ser enfim “original” é o grande objetivo da vida. É um conceito pelagiano, ou pior, autodestrutivo. O homem que valoriza a originalidade jamais será original. Mas tente dizer a verdade tal como você a vê, tente trabalhar com perfeição por amor ao trabalho, e aquilo que os homens chamam de originalidade surgirá espontaneamente. Mesmo nesse nível, a submissão do indivíduo à função é já o início de um processo que revelará a verdadeira personalidade. Em segundo lugar, queria mostrar que, afinal, nem os indivíduos, nem as comunidades interessam ao cristianismo. Nem um indivíduo, nem a comunidade, tal como vulgarmente se entendem, poderão herdar a vida eterna: nem o homem natural, nem as sociedades, mas a nova criatura.

Fonte: Peso de Glória – C.S. Lewis – Editora Vida Nova.

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